Santa infância

                                                                           Nove anos                                                                           
                                               Com Catherine, praia de Itaipu, 2005
Muita gente postando fotos dos tempos de criança no Facebook em homenagem a 12 de outubro. Não sei explicar (será que não sei?), mas não conseguia me mobilizar, correr atrás de fotos minhas quando era pequeno para colocar lá também. Mas hoje decidi postar. Uma foto minha e outra de 2005 com minha sobrinha Catherine (então com cinco anos) na abençoada praia de Itaipu.

Cuidei e cuido mal de minha história pessoal, que está espalhada por aí e, sinceramente, nessas horas gostaria de ser mais cartesiano, mais “marcha soldado”, mais organizado, ter livros, cadernos com toda a minha história, meus milhares de textos publicados, mas não. O que vejo é uma zona, uma baderna, um emaranhado de coisas espalhadas, perdidas, sumidas.

Minha infância. Lembro muito bem dela porque é na infância que a felicidade plena, absoluta, deixa suas pegadas tatuadas em nossa alma, já que a infância é uma fantasia concreta. Acho que só na infância temos acesso temporário a felicidade plena porque vivíamos nadando no lúdico, nos sonhos, na ingenuidade, na alienação natural e sem o adestramento que vem mais tarde.

Minha infância foi em Angra dos Reis. Meu pai era oficial de Marinha e saímos daqui para morar na vila do Colégio Naval quando eu tinha uns três ou quatro anos. E lá vivi até quase nove.

Meu primeiro colégio ficava no centro de Angra e se chamava “Santa Infância”. Até recentemente tinha o diploma emoldurado em minha mesa de trabalho, mas ele também sumiu. Minha infância está guardada em minhas memórias e envolvem muitos passarinhos, em especial coleirinhos, tiês-sangue, sabiás, muito mar, pedras, siris, caranguejos e ele, o céu.

Ficava horas e mais horas deitado numa pedra de barriga para cima olhando o céu, vendo os jatos passarem muito alto riscando linhas retas e brancas naquele azul profundo. A noite, os jatos davam lugar aos satélites, que como estrelas minúsculas cruzavam o céu. Numa dessas sessões de contemplação lembro bem do meu primeiro, digamos, questionamento filosófico. Em pensamento perguntei para mim mesmo “será que sou feliz?”. Muitos anos depois, entregue a psicanálise (viva ela!), essa frase foi trabalhada exaustivamente. Trabalhada, trabalhada, trabalhada. Em resumo, minha infância foi tão feliz que custei a me desapegar.

Um dia, no final de uma sessão, disse para a minha querida analista “minha infância ficou em Angra. Mora lá, perambula por lá.” Foi no dia de um amanhecer de verão quando minha família deixou o Colégio Naval rumo a chamada civilização. Mudamos para Niterói. Lembro que quando saíamos de carro o “meu” coleirinho predileto cantava forte no alto de um ingazeiro enquanto o sol dava sinais de sua presença. Foi a última imagem de minha infância: o sol nascendo, o ingazeiro e o coleirinho. Minha santa infância acabava ali.

O lado B do disco da vida começou a tocar quando entrei em Niterói e tive que entender o que era um apartamento, sem mar, sem cipós, sem árvores, coleirinhos, ônibus, caminhões. Tive que engolir a insegurança pública, ir a colégio sendo levado por alguém, enfim, fui do Cosmos ao caos em poucos dias e fui apresentado a neurose.

Sofri muito, mas com o passar do tempo, dos ventos, dos amigos, grandes analistas e terapeutas e almas gêmeas como o meu pai (fiel e paciente depositário de minhas angústias), segui em frente e consegui guardar minha infância num precioso cofre sem chave, onde todos tem acesso porque não gosto de levar a vida cercado de senhas. O problema é que na sintomática balbúrdia da minha casa não sei onde o cofre foi parar.


Mas isso é outro assunto, para outras infâncias, para outros dias da criança de todos os tempos, céus, praias, serras e cantos de coleiros e sabiás.

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