Relendo um grande livro: "Dias de Luta - o rock e o Brasil dos anos 80", de Ricardo Alexandre
Mais uma vez cumprimento o colega Ricardo Alexandre por sua
tijolada maravilhosa chamada "Dias de Luta - o rock e o Brasil dos anos
80" (Arquipélago Editorial), livro que ganhou uma segunda edição em 2013 e
que entrou no cardápio do Kindle e outros e-books.
Um dos capítulos é dedicado a Rádio Fluminense FM e reproduzo
aqui:
FLUMINENSE
FM
Quem, às
seis da manhã de primeiro de março de 1982, sintonizasse os 94,9 da velha Rádio
Fluminense FM de Niterói e trombasse com “The kids are alright”, do Who, não
poderia imaginar por quais vias tortas o clássico riff de Pete Townshend composto
17 anos antes poderia se conectar com o nascente rock brasileiro.
Muito
menos que diabos fazia o Who àquela hora, naquela frequência. Havia alguns
minutos, a Fluminense ainda era um inexpressivo braço radiofônico do Grupo
Fluminense de Comunicações, sustentado pelo jornal O Fluminense — no nono andar
de um prédio caindo aos pedaços em frente à rodoviária de Niterói.
Foi para
lá que, um ano antes, rumou Luiz Antonio Mello, repórter do Jornal do Brasil,
com um projeto de um programa sobre rock e comportamento chamado Rock alive
para apresentar ao diretor superintendente do grupo, Ephren Amora. Numa dessas
confusas manobras milagrosas, em setembro de 1981, a partir do projeto, Mello
assumiu a direção da emissora.
Órfão de
carteirinha da Eldo Pop FM e da Federal AM de Niterói, o repórter vislumbrava
uma rádio completamente fora do padrão vigente — a saber, de locutores
engraçadinhos, mas sem conteúdo informativo, e “listões” de 60 músicas chupados
de alguma Billboard de três meses atrás. A ideia era defender junto aos
ouvintes sua própria programação, de lados B, exclusividades e “hits” próprios.
Nos
microfones, somente locutoras, fato sem precedentes conhecidos no rádio
brasileiro. De uma multidão de 500 candidatas, entraram no ar Liliane Yusim,
Monika Venerabille, Selma Vieira, Selma Boiron, Edna Mayo e Cristina Carvalho.
Com exceção de Liliane e Monika, todas completamente sem experiência no
assunto, assim como praticamente toda a equipe de aventureiros que formava a
Fluminense.
Além disso, nada era proferido sem que fosse
escrito e pesquisado anteriormente — “rádio sem produção é eunuco”, vociferava
Mello. Apesar de todo o preciosismo e cuidado com os detalhes, a Fluminense que
entraria para a história do pop nacional não foi ao ar junto com “The kids are
alright”.
Nem Luiz
nem seus programadores, nem o valoroso grupo de abnegados que construiu o
projeto da rádio perfeita gostaram do que ouviram durante o primeiro dia de
transmissão. Após uma manhã de sono, o diretor voltou pra os estúdios e, com
seus colegas, esperava uma iluminação divina para elaborar um playlist para o
dia seguinte, à base de muito The Who, Celso Blues Boy e Dire Straits.
Foi
então que surgiu um ouvinte anônimo, empolgado com a nova FM roqueira, de posse
de uma fita cassete, gravada ao vivo no Circo Voador, com o maior sucesso dos
shows de uma banda nova, formada por ex-integrantes do Asdrúbal Trouxe o
Trombone — uma banda que, por sinal, havia feito o show de inauguração do
Circo, em janeiro. A música, um emaranhado caótico de guitarras anos 60, samba
de breque e narrativa de história em quadrinhos, se chamava “Você não soube me
amar” e a banda se chamava Blitz. A fita foi ao ar no mesmo dia e, a partir
daí, sim, tudo mudou.
Tudo
mudou para a Fluminense, que começou a ganhar fama de incentivadora do rock
brasileiro e de “lançadora” do novo pop mundial, quando, de fato, a música
brasileira não era prioridade em seu projeto original. Havia um único programa
destinado à produção local, Espaço aberto, criado para cumprir a cota de 50% de
música brasileira exigida por lei no horário das 20h.
Um outro
programa, o Rock Alive, era o verdadeiro responsável pelo abastecimento de
novidades na Fluminense, comandado por Maurício Valladares, um ex-assessor de
imprensa do Serviço de Transportes da Baía da Guanabara, fotógrafo pop e
notório fuçador cultural.
A sorte da Maldita (como a rádio ficou carinhosamente
conhecida) era a de que, como não usava os habituais “listões”, sua programação
era muito mais aberta a toda sorte de esquisitices, como tocar um belo de um
rock progressivo, algum lado B do grupo Rumo ou uma demo tape de uma banda
desconhecida gravada no Circo Voador. Por outro lado, o altíssimo número de
músicas em rotação na rádio dificultava a assimilação de novos nomes — e a
Blitz continuou um fenômeno restrito ao underground. Não por muito tempo.
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Ricardo Alexandre, colega jornalista, escreveu essa obra
brilhante e dedicou um capítulo inteiro a Rádio Fluminense FM. Pesquisador de
primeira, ele usa fontes primárias em 90% das apurações e citações e são elas,
as fontes primárias, segundo o mestre Hélio Silva, que certificam a qualidade
de um livro de história.
Bem escrito, o que também é crucial, o livro nos situa em
vários momentos dos anos 1980. Destaco, por exemplo, os capítulos sobre o
movimento punk em São Paulo e Brasília quando o autor mergulha nos guetos das
cidades e entrevista os principais atores.
A apuração e narrativa sobre a curta vida do movimento em
Brasília aprofundam o relato pessoal de Dado Villa Lobos em seu ótimo e
fundamental livro "Memórias de um Legionário" e também o demolidor
"O Trovador Solitário", tratado definitivo de Arthur Dapieve sobre
Renato Russo com um mergulho abissal no "cotidiano" punk da capital
federal.
"Dias de Luta" que está na segunda edição e é um
trabalho fundamental.
A versão em papel do livro está nas melhores livrarias, com suas robustas e muito bem escritas 440 páginas. A Amazon descreve assim o livro em sua sinopse: "Dias de Luta - o Rock e o Brasil Dos Anos 80" é o registro de um período único da música brasileira.
Na década de 1980, entraram em perfeita sincronia uma geração
de artistas talentosos e uma indústria fonográfica ávida por novidades. Essa
combinação, somada a um momento histórico propício a rupturas e recomeços,
transformou o rock brasileiro em um fenômeno de massa inédito no país. Os
jovens roqueiros tornaram-se popstars.
A música cosmopolita tomou conta das rádios e das TVs. O rock
virou um grande negócio. A história do rock brasileiro dos anos 80, da ascensão
à queda, é reconstituída com precisão pelo jornalista Ricardo Alexandre.
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